Caboclismo, Vadiagem e Recrutamento Militar entre as populações indígenas do Espírito Santo (1822-1875)

Authors

  • Vânia Maria Losada Moreira

DOI:

https://doi.org/10.7146/dl.v6i11.113641

Keywords:

Caboclismo, Vaiagem, Recruamento, Militar

Abstract

Na historiografia sobre a América Latina, o recrutamento forçado para o serviço militar tem sido identificado não apenas como um meio de garantir ao Estado os efetivos de soldados, mas também como um importante instrumento de controle social e de coerção ao trabalho, já que, freqüentemente, recai sobre as populações consideradas “vadias” e/ou “perigosas”. Menos conhecido, no entanto, é o impacto do recrutamento entre as populações indígenas brasileiras durante o Império, embora as evidências históricas demonstrem que os índios foram, desde o período colonial, objeto dos cálculos militares e estratégicos do Estado.
No presente artigo, pretendemos discutir o recrutamento militar entre a população indígena da província do Espírito Santo, composta, aliás, por dois tipos bastante diversos de índios: os “mansos” ou “caboclos”, oriundos das antigas missões jesuíticas, que viviam nas vilas ou em seus arredores, e os “selvagens”, provenientes de tribos recém-contatadas, conhecidos como Botocudos. A partir da análise de uma documentação primária de caráter normativo e administrativo, composta sobretudo por decretos, avisos e correspondências sobre o recrutamento e sobre as atividades da vila indígena de Nova Almeida, reconstruímos as diferentes formas de recrutamento de índios no Espírito Santo e os objetivos postulados com tais práticas. Trabalhamos com a hipótese de que, além de ter sido um meio de controle social e de coerção ao trabalho, o recrutamento militar entre os indígenas da província também funcionou como um mecanismo de integração forçada à ordem social dominante. Focalizaremos nossa análise principalmente em duas questões centrais: o serviço militar como um tributo pago pelos pobres e a associação entre caboclismo e vadiagem, o que redundou na transformação dos índios em um dos alvos preferenciais do recrutamento forçado.

References

1 Professora Adjunto IV do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e do Programa de Pós-graduação em História Social das Relações Políticas - UFES
2 Trata-se da lei n. 2556, de setembro de 1874.
3 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, folha 13 e 14. Para facilitar a leitura, as citações documentais tiveram sua ortografia e pontuação vertida para o português atual, sem prejuízo de seu conteúdo.
4 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, folha 441.
5 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 441.
6 Fábio Faria Mendes. A “lei da cumbuca”: a revolta contra o sorteio militar. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 13, n. 24, 1999, pp. 267-293, p. 268.
7 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 231.
8 Hendrik Kraay. Repensando o recrutamento militar no Brasil Imperial. Diálogos – Revista do Departamento de História da UEM. Maringá, vol. 3, n. 3: 113-151, 1999, p. 115.
9 Op. cit, p. 115.
10 Fábio Faria Mendes. A “lei da cumbuca”: a revolta contra o sorteio militar. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 13, n. 24, 1999, pp. 267-293, pp. 268-9.
11 Como explica o autor: “A revolta é interpretada aqui como prática coletiva cuja forma exprime representações e expectativas dos agentes sobre a natureza da ordem social. A lei do sorteio rompia expectativas tradicionais quanto à forma e aos objetivos do recrutamento, introduzindo novos elementos de incerteza.” Op. cit., p. 270.
12 Id., op. cit., p. 275.
13 Id., op. cit., p. 272-274.
14 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fl. 39.
15 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 238.
16 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fl. 62.
17 Op. cit., p. 123.
18 H. Kraay, op. cit., p. 124.
19 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 567. No mesmo documento, em anexo, subscrevia-se a relação do número de recrutas que cada município deveria enviar. “Relação dos recrutas que devem dar os municípios da Província
Cidade de S. Matheus…………………………………………….…..5
Vila da Barra…………………………………………………….…... 5
Vila de Linhares………………………………………………….….. 4
Vila de Sta. Cruz…………………………………………...………....5
Vila de Nova Almeida………………………………………………...5
Vila da Serra, sendo um pelo Distrito de Queimado…… ……….5
Cidade de Vitória, sendo dois fornecidos por cada uma das freguesias de Viana, Cariacica, Carapina e um pelo Distrito de Mangarahy....11
Vila do Espírito Santo…………………………………………………4
Vila de Guarapary……………………………………………………. 6
Vila de Benevente.………………………………………………….... 6
Soma 62”
Cf. APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 238.
20 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fl. 16.
21 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fl. 27.
22 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fl. 75.
23 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fl. 69 v.
24 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 101.
25 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 101.
26 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fls. 87-89.
27 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fls. 87-89.
28 Op. cit., p. 119.
29 Fábio Faria Mendes, op cit., p. 271.
30 Mathias Röhrig Assunção. Cabanos contra Bem-te-vis: a construção da ordem pó-colonial no Maranhão (1820-1841). In: In: Priore, Mary del e Gomes, Flávio (orgs). Os senhores dos rios. Amazônia, margens e histórias. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2003, p. 217.
31 Id., op. cit., p. 210.
32 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fls.108.
33 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fls.109.
34 Caio Prado Jr. Formação do Brasil comtemporâneo. 11 ed. São Paulo: editora Brasiliense, 1971, p. 281.
35 Laura de Mello e Souza. Desclassificados do Ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 62-63.
36 Op. cit., p. 64.
37 Op. cit., pp. 126-7.
38 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fls.108.
39 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fl. 69 v.
40 Em outros termos, segundo a lei de 1874, caso fosse insuficiente o alistamento voluntário, o primeiro sorteio paroquial para selecionar os recrutas recairia sobre os cidadãos de 19 e 30 anos, que serviriam por seis anos. As isenções protegiam bacharéis, padres, estudantes, homens encarregados de órfãos, marinheiros, um filho de cada lavrador, maquinistas à serviço das estradas de ferro, vaqueiros, um caxeiro de cada casa de comércio, soldados da polícia e os que pagassem contribuição pecuniária ou apresentasse substituto. A nova lei não isentou os filhos que amparassem as mães viúvas ou solteira ou que sustentassem pais velhos. Também não manteve a isenção dos homens casados. No entanto, um decreto do executivo suspendeu o alistamento dos casados. Cf. Fábio Farias Mendes, op. cit., p. 138.
41 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fl. 14.
42 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 567.
43 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fl. 16.
44 Cf. Nara Saleto. Transição para o trabalho livre e pequena propriedade no Espírito Santo. Vitória: EDUFES, .1995, p. 25.
45 Nara Saleto, op. cit., p. 27.
46 Wied-Neuvied Maximiliano. Viagem ao Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, 137.
47 João Pacheco de Oliveira. Ensaios em antropologia histórica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999, p. 138.
48 Maria Regina Celestino Almeida. Metamorfoses Indígenas. Identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 145.
49 Ver, por exemplo, o trabalho de Celestino sobre os índios coloniais das aldeias do Rio de Janeiro: “Se, no interior das aldeias, as referências aos nomes dados pelos portugueses aos grupos étnicos antes dos aldeamentos (tamoio, tupiniquim, temiminó erc.) realmente se perderam ou foram colocados em segundo plano, cabe reconhecer, com base nas questões teóricas da atualidade e nas várias evidências empíricas apresentadas nesse trabalho, que uma outra referência de identificação, com certeza mais interessante para os índios em situaçãocolonial, estava se formando: a de índio aldeado, identidade genérica e inicialmente dada pelos colonizadores, mas apropriada pelos índios que souberam utilizá-la para obter vantagens e benefícios que essa condição lhes proporcionava. De acordo com a documentação, a identidade de aldeado com nome de batismo português e a referência à aldeia em que habitavam se sobrepunham à do grupo étnico e pelas evidências documentais já apresentadas, não resta dúvida que isso ocorria também em função dos interesses dos próprios índios.” Op. cit., p. 259.
50 Bazílio Carvalho Daemon. História e estatística da província do Espírito Santo. Vitória: Tipographia Espírito Santense, 1879, 294.
51 Sobre os conflitos entre índios e capitães-mor vale a pena consultar o artigo e os documentos compilados por Joaquim Noberto de Souza Silva, sobretudo as partes referentes à Aldeia de Mangaratiba. cf. Memória histórica e documentada das aldeias de índios da província do Rio de Janeiro. Revista do IHGB. Rio de Janeiro: 3 série, n. 14, pp. 109-552, 2 trim. 1854, pp. 421431 e passim. As narrativas dos viajantes que passaram pelo Espírito Santo no princípio do século XIX são absolutamente claras quanto às possíveis fontes de conflito entre índios “domesticados” e autoridades locais: a exploração excessiva do trabalho dos indígenas e o crescente esbulho territorial. Cf. Vânia Maria Losada Moreira.Terras indígenas do Espírito Santo sob o regime territorial de 1850. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n.43, pp. 153-169, 2002.
52 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 174.
53 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 174v.
54 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 4.
55 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 42.
56 Vânia Maria Losada Moreira. Nem selvagens nem cidadãos: os índios da Vila de Nova Almeida e a usurpação de suas terras durante o século XIX. Dimensões – Revista de História da Ufes. Vitória, n. 14, pp. 151-168, 2002, p.154.
57 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 129.
58 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 129.
59 APEES. Secção Histórico-Administrativa – Chefe de Polícia 1845 e 1846 – Fundo Accioly - no 56, fl. 494 e 495.
60 APEES. Secção Histórico-Administrativa – Chefe de Polícia 1846 e 1848 – Série Accioly - no 57, fl. 40.
61 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 179.
62 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 181.
63 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 286.
64 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fls. 289 e 289v.
65 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 386.
66 APEES. Série Accioly. Livro 34 – Correspondência de Recrutamento, fl. 567.
67 APEES. Série Accioly. Livro 35 – Correspondência de Recrutamento, fl. 27.
68 August Biard. Apud. Vânia Maria Losada Moreira .Índios do Brasil: marginalização social e exclusão historiográfica. Dialogos Latinoamericanos. Aarhus/Dinamarca, n. 3, pp. 87-113, 2001, p. 99.

Published

2005-06-01

How to Cite

Moreira, V. M. L. (2005). Caboclismo, Vadiagem e Recrutamento Militar entre as populações indígenas do Espírito Santo (1822-1875). Diálogos Latinoamericanos, 6(11), 27. https://doi.org/10.7146/dl.v6i11.113641

Issue

Section

Articles