Revue Romane, Bind 28 (1993) 2

Vanguarda como poesia negativa : Aldo Palazzeschi e Alberto Caeiro

por

Jan Hupfeldt Nielsen

Quando se fala da relaçâo entre Fernando Pessoa e os movimentos de vanguardahistóricos ,1 é costume falar sobretudo do heterónimo Alvaro de Campose também de certos poemas de Pessoa ortónimo. Isto, de facto, nao é de estranhar, porque é possível observar ligaçôes bastante obvias entre o primeiroCampos e o futurismo italiano, o futurismo italiano como foi propagadopelo chefe e instigador F. T. Marinetti. Assim - tentando definir breve e rapidamente alguns pontos em comum que estáo à base seja da experiencia futurista de Marinetti seja da de Campos - podemos em primeiro lugar assinalar a relaçâo que os dois poetas entretêm com a realidade, ou, para melhor dizer, com a realidade exterior da Modernidade. É urna relaçâo que se contradistingue sobretudo pela aceitacáo quase incondicionada dos fenómenosproduzidos pela evolucáo técnica e urbanística. Claro está que me refiro às amadas «máquinas» de Marinetti, a todas as coisas que podem gerar no homem futurista a sensaçâo de velocidade e dinamismo, de movimento,de vida em suma. Perante esta realidade, a atitude de Marinetti e de Campos é portanto duma aceitacáo regozijante (estou consciente de fazer urna descricáo muito redutiva do primeiro Campos, mas todavia a reduçâo conserva, a meu ver, um valor de verdade fundamental), e a estética que corresponde a esta atitude é essencialmente urna estética mimetista. Desta maneira, o produto poético tende a ficar urna imagem da realidade concebidacomo realidade dinamizada, e, no caso de Marinetti e até certo ponto também no de Campos, visa a produzir o equivalente estético da Modernidade.De facto, para Marinetti a montagem (literaria) é encarada como o equivalente estético da Modernidade, ou seja, como o equivalente do dinamismo,da vida dinamizada. Por isso, podemos, enfim, definir a estética de

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Marinetti e, como disse, também em certa medida, a de Campos como urna
estética positiva.

A indicaçâo dum lado construtivo e positivo da vanguarda histórica implica naturalmente a existencia dum lado negativo. Ao contrario do ramo positivo, a modalidade negativa nao tem como fundamento a aceitaçào incondicionada das maravilhas da Modernidade, do dinamismo do presente. O traço fundamental que distingue a modalidade a que chamo negativa é antes a rejeiçâo do passado. Por conseguinte nao temos aqui urna tentativa de criar o equivalente da Modernidade. Temos somente a expressa vontade de rejeitar a historia, obviamente nao a historia como facto, mas a historia como a historia das belas-artes e sobretudo como a 'historia' da sobrevivencia de modalidades pertencentes a esta historia. Trata-se, neste caso, da historia literaria e é exactamente perante a historia literaria (e, como veremos, perante o público literario) que o lado negativo da vanguarda histórica assume urna atitude que podemos definir como (sempre latente) disponibilidade de negaçâo. Dai resulta que o sobredito ramo positivo da vanguarda histórica (o futurismo de Marinetti/Campos) se baseia sobretudo numa visáo literaria que tem como referencia principal o presente, o mundo exterior das dinámicas máquinas, enquanto o ramo dito negativo faz as contas com a sua pròpria historia. A referencia é, portanto, intra-literária.2

Ora, o meu intuito com este artigo é exactamente, através duma comparaçâo parcial com o poeta italiano Aldo Palazzeschi, que representa nitidamente a supramencionada modalidade da disponibilidade de negaçâo no futurismo italiano, de mostrar que nao só Alvaro de Campos mas também Alberto Caeiro se inserem, se nao num movimento de vanguarda propriamente dito, ao menos na lógica da modalidade negativa do futurismo italiano. Quero, consequentemente, ver Caeiro através duma óptica intra-literária, através duma óptica de vanguarda.

Primeiro Palazzeschi, urna descriçâo sintética da sua poesia juvenil.

A produçao poética de Palazzeschi escrita antes da Primeira Guerra Mundial, divide-se em duas fases nítidamente distintas. Assim, a sua primeira fase define-se normalmente como de expressáo crepuscular, como fazendo parte do «crepuscolarismo» literario italiano.3 A esta fase pertencem os très primeiros volumes de poemas de Palazzeschi, Cavalli bianchi (1905), Lanterna (1907) e Poemi (1909). Os poemas que constituem a base destes volumes podem ser definidos como urna especie de anti-poesia muito pessoal e muito a baixa voz e é, entre outras coisas, neste aspecto que vejo (é escusado dizê-lo) algumas afinidades com a poesia de Alberto Caeiro.

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Vamos ver, entáo, um exemplo do estilo de Palazzeschi da primeira fase,
do «crepuscolarismo». O poema é de Cavalli bianchi (1905) e intitula-se «Le
fanciulle bianche». Cito o poema na integra visto ser bastante breve.

La gente cammina pian piano
sull'erta che mena alla chiesa.
È un lungo viale fra gli alti cipressi.
La chiesa è la vetta del monte.
La gente cammina pian piano.
A mezzo dell'erta, a sinistra,
v'è un grande cancello che chiude un giardino.
Là dentro passeggiano le fanciulle bianche.
Passeggiano lento pel grande giardino.
Non hanno un sorriso.
La gente passando si ferma a guardare.

Urna simples observaçâo formal patenteia de imediato que o poema consiste quase exclusivamente de frases principáis. Só duas pequeñas frases subordinadas quebram a cadeia das frases principáis. Todas aquelas frases principáis sao curtas e parece que estâo derramadas na estrutura do poema como se nao houvesse entre elas qualquer nexo lógico. Por isso, o poema cria urna impressáo dum conjunto de observacóes que nao recebe nenhuma elaboraçâo ou organizaçâo da parte dum sujeito interpretante. A estrutura atomistica' poema indica, portanto, urna dupla ausencia: a ausencia de sentido ou de interpretaçào como, pelo menos, o sentido lógico dá a impressáo de desaparecer no espaço entre as frases, e a ausencia do poeta que, embora saibamos que está atrás de tudo, parece anular-se como sujeito que ordena e interpreta. (É obvio que o poeta nao desaparece total e literalmente. Ainda é ele que nos dá a descriçâo dos fenómenos do mundo e é através disto que a sua presença é afirmada. Mas nao nos surge como um sujeito que se comove sentimental ou intelectualmente com os fenómenos observados).

Outra coisa em que se pode reparar é a falta de adjectivos 'pesados'. Adjectivos como «lungo», «alto», «grande» e «bianco» podem quase ser definidos como objectivos, enquanto que adjectivos como, por exemplo, 'triste' e 'alegre' já descrevem e avaliam estados de alma. Notável é, por conseguinte, que a frase que descreve o estado de alma das meninas brancas («le fanciulle») evite o uso do adjectivo triste e em vez disso recorra a urna caracterizacáo negativa, («Non hanno un sorriso»).

Dum ponto de vista formal, podemos assim afirmar que o poema se aproxima de um zero emocional, que é anti-expressivo, (tecnicamente falando, claro está). E podemos também dizer que temos ñas máos um anti-poema, pelo menos se assumirmos como padráo e como expressáo paradigmática da poesia o poema e a poética románticos.

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Se observarmos de seguida a situaçâo que o poema descreve veremos que a simplicidade continua a prevalecer. Algumas pessoas que váo à igreja param para olhar algumas meninas brancas. E mais nada. Frisando noutra maneira: um sujeito olha para um objecto. Este sujeito anónimo («la gente») é um sujeito totalmente passivo que nao reage à impressâo visual. Olha. Por isso, estamos perante um sujeito que só da maneira mais elementar, quase só gramaticalmente, se manifesta como sujeito e esta asseveraçâo é reforçada pelo facto de ele, nos seus traços distintivos, ser muito semelhante ao objecto. A descriçâo do sujeito («la gente») e o objecto («le fanciulle») é quase idéntica no que diz respeito à acçâo deles: «La gente cammina ...» e «La gente cammina ...» e «... passeggiano le fanciulle» e «Passeggiano...».

Deste modo, temos urna passividade total, um poeta que está para desaparecer como ordenador e interpretador da realidade, e temos, noutro nivel textual, um sujeito que está para se anular numa identidade dum objecto passivo.

A imobilidade, a nâo-acçâo quercina no poema sublinha-se também tanto pela redundancia lexical como pela reiteraçâo de inteiras frases. Acrescentese a esta redundancia, que se encontra no poema isolado, urna redundancia e urna reiteraçâo que se encontram no nivel de volume: o protagonista é quase sempre «la gente», o tema é quase sempre (em abstraccáo) o do encontró entre um sujeito passivo e 'objectivado' e um objecto igualmente passivo, a topografia também sofre poucas mutacóes e urna outra coisa é o tempo narrativo que dum modo geral é o presente sem historia.

Resumindo esta rápida análise podemos concluir que a anti-poesia da primeira fase de Palazzeschi se distingue sobretudo pela relaçâo passiva entre um sujeito que tende para se auto-anular por contiguidadc com um objecto passivo que forma a segunda parte da relaçâo em questáo e podemos acrescentar que o pròprio poeta, pela manifesta tentativa de outorgar ao leitor urna nâo-interpretaçaô da realidade, está também para desaparecer.

Para terminar a breve descriçâo do Palazzeschi «crepuscular» e a firn de mostrar que também a anti-poesia é, naturalmente, urna lindissima poesia, apresento outro exemplo de Cavalli bianchi. O título do poema é «La vecchia del sonno».

Cent'anni ha la vecchia.
Di rado l'an vista aggirarsi nel giorno.
Sovente la gente la trova a dormire vicino aile fonti.
Nessuno la desta.
Al lento romore dell'acqua la vecchia s'addorme,
e resta dormendo nel lento romore
dei giorni dei giorno dei giorni.4

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Em 1910, Palazzeschi encontra Marinetti e entra para o grupo futurista. O encontró mudará radicalmente a poesia de Palazzeschi, mas permanece fiel à sua índole pessoal. Adere ao futurismo, faz parte do «grupo», mas nao adapta a poética de Marinetti (alias «as palavras em liberdade» foram só teorizadas em 1912) nem utiliza nos seus poemas muitos conceitos marinettianos. Porém, no seu pessoalíssimo estilo muda, ou seja, inverte radicalmente as estruturas assinaladas na sua primeira fase. Assim, onde antes víamos um sujeito marginalizado, quer dizer, um sujeito que estava na periferia do círculo a litar um objecto passivo no centro do mesmo círculo, agora vemos um sujeito que conquista o centro e que começa a fazer valer a sua vontade e as suas ideias perante o objecto. De L'incendiario (1910) um trecho do inicio do poema epónimo.

In mezzo alla piazza
del paese,
è stata posta la gabbia di ferro
con l'incendiario.
Vi rimarrà tre giorni
perché tutti lo possano vedere.
Tutti s'aggirano torno torno
all'enorme gabbione,
durante tutto il giorno,
centinaia di persone.

Aparentemente ainda observamos a mesma estrutura do olhar mais ou menos passivo (e, ainda por cima, parece um objecto preso numa gaiola e, por isso, imóvel), mas só aparentemente porque, como o poema progride sintagmaticamente, reparamos que «tutti», «le persone» ou o anterior sujeito anónimo, de facto, nao é o verdadeiro sujeito. O homem que esta vez se faz sujeito é o poeta, e o seu modo de entrar, a sua maneira de conquista que espelha um poeta muito confiante em si pròprio, afastam qualquer noçâo de passividade. Agora a relacáo entre sujeito e objecto é antagónica.

Largo! Largo! Largo!
Ciarpame!
Piccoloi esseri
dall'essalazione di lezzo,
fetido bestiame!
(...)
Largo! Sono il poeta!

A diferença entre a fase crepuscular e a fase futurista de Palazzeschi tornaseevidente.
Ainda podemos falar de anti-poesia, seja pela forma coloquial,
seja pelas rimas 'atrevidas', seja pelos temas insólitos e insolentes, seja pela

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agressividade cm frente do leitor/do objecto, contudo trata-se de outro tipo de anti-poesia.5 O que importa aqui evidenciar sâo as mudanças na relaçâo básica entre sujeito e objecto. Afinal o sujeito adquiriu as características dum sujeito, age sobre o objecto, e consequentemente a passividade e imobilidade sao substituidas pela agressividade. E além disso, é importante precisar que o novo sujeito nao é um sujeito qualquer, é o poeta. O poeta que antes cstava para desaparecer e anular-se, ressurge com toda a pompa e circunstancia que um poeta pode pedir. Ainda de «L'incendiario», o poeta a rezar.

Io sono il sacerdote,
questa gabbia è l'altare,
quell'uomo è il signore!6

Em resumo: onde antes tínhamos um poeta tào humilde que quase nâo era poeta, um sujeito tào passivo e 'objectivado' que quase nao era sujeito, assistimos agora a urna transfiguraçâo radical. Surge o poeta orgulhoso e soberano que reúne em si tanto o sujeito precario como o poeta precario. Falta só acrescentar que o poeta transfigurado nâo é o cantor da Modernidade dinamizada nem de qualquer outra coisa positiva. Vive, dentro das estruturas dos poemas de Palazzeschi, urna relaçâo antagónica com «la gente», denominaçâo que muitas vezes representa explícitamente o público, os leitores do poeta. O público, porém, nao é o único alvo da troca e agressividade do poeta. Também a tradiçâo literaria leva boa parte das bengaladas da sempre vigilante disponibilidade agressiva do poeta futurista. Assim, Palazzeschi parodia o decandentismo tanto como estilo literario como estilo de vida, parodia e inverte a tradiçâo da lírica das flores, parodia e inverte o melancólico poeta romántico que passcia tristemente nos lúgubres cemitérios, etc. Como em Caeiro, os poetas constituem o alvo da zombaria. De «La fiera dei morti» (1913).

I pocti caniano
malinconicamente
qucsta fiera:
tutti alla stessa maniera,
questa giornata grigia e nera.
(Ma si puô benissimo cantare
anche in un'altra maniera).
(...)

Deste modo, Aldo Palazzeschi, o poeta crepuscular e o poeta futurista, numa
apresentaçào muito ràpida.

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Após a descriçâo do jovem Palazzeschi chegamos ao segundo elemento da comparacáo assinalada no inicio deste artigo, Alberto Caeiro. Mas, antes de começar a apresenteçâo do heterónimo pessoano, é importante sublinhar que a prometida comparacáo nao decorre conforme principios que visam a desvelar influencias sofridas, neste caso influencias sofridas pelo heterónimo Caeiro, visto que a sua produçâo poética é posterior à de Palazzeschi. Antes trata-se aqui de evidenciar que também a poesia de Caeiro deve ser encarada através duma certa lógica de vanguarda, ou seja, através da modalidade de negaçâo que já vimos que Palazzeschi exprime. Normalmente, na crítica, isto nao acontece. Em vez de estudar Caeiro numa perspectiva intra-literária, é habitual salientar os aspectos filosóficos da sua poesia e aqui sobretudo a parte da filosofia que tem a ver com a teoria de conhecimento. Portanto, o foco de interesse afasta-se da relacáo literatura-literatura para se aproximar da relacáo literatura-mundo dos fenómenos; e esta relacáo constituí somente um dos níveis na poesia de Caeiro.

Pode-se dizer, entáo, que 0 guardador de rebanhos expóe um projecto explícito, e este projecto é exactamente um projecto filosófico. Já foi descrita diversas vezes a teoria de conhecimento que este projecto envolve e por essa razáo limitar-me-ei a urna breve exposiçâo.

É o desejo do «eu» de O guardador de rebanhos de entreter com o mundo dos fenómenos urna relacáo «pura», urna relacáo que permita as coisas serem percebidas com toda a realidade e veracidade que têm. Para alcançar este estado de objectividade, em que as coisas podem ser captadas em si, é preciso que o «eu» se liberte de si mesmo, da sua subjectividade; é preciso o «eu» tornar-se um aparelho registador que ve e ouve, que sente sem que as sensaçôes fiquem coradas pela subjectividade. Na relacáo eu - coisas (a relacáo de base na pista filosófica de Caeiro) o «eu» tende a auto-apagar-se, a ficar urna membrana que deixa passar as coisas sem modificá-las. Pierre Hourcade define, assim, a desejada objectividade de Caeiro:

A percepçâo da natureza, ou antes, cada percepçâo do mundo exterior,
encontra em si mesma o seu fim e a sua justificaçâo. As coisas existem em si
e por si.7

José Augusto Seabra define da seguinte maneira a ambiçâo objectivante de
Caeiro:

Caeiro apresenta-se, antes de mais, como o poeta das sensacóes estremes.
(...) Há nele, em suma, urna identificaçâo das sensacóes com o seu objecto,
por urna reducáo, que se poderá dizer fenomenològica.8

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Numa lógica rígida, urna lógica que alias quase nenhum poema de Caeiro consegue ou quer seguir, a vontade de objectividade tem varias consequéncias. Tudo é o que parece ser, tudo é, por conseguirne, superficie ou, para melhor dizer, a habitual distinçâo entre superficie e profundidade torna-se obsoleta e com o desaparecimento desta distinçâo desaparece também a metafísica tradicional. (Pode-se falar, com Seabra, de anti-filosofia). Tudo é presença e, por conseguinte, conceitos como lembrança e historia sao considerados como ilegítimos. (Pode-se falar de anti-história). Tudo o que existe há-de ser aceite, consequentemente tudo é legítimo. (Pode-se falar de antiética. (Note-se a contradiçâo com o axioma anterior)). A verdade é concreta e apenas a coisa mesma pode representar-se a si pròpria. (Pode-se falar de anti-estética).

A esta lógica, a estes axiomas devia corresponder urna poesia de pura enumeraçâo ou de pura tautologia. No poema XLII de O guardador de rebanhos encontramos de facto o que podemos definir como um trecho duma enumeraçâo com principio interminável («Vi que nao há Natureza, /Que Natureza nao existe, /Que há montes, vales, planicies, /Que há arvores, flores, ervas, /Que há ríos e pedras,... «), eno poema XXXV vemos um lindo exemplo de tautologia («O luar através dos altos ramos»), mas estes trechos sao muito esporádicos. O que podemos realmente observar na obra de Caeiro é urna poesia de aparência táo simples que se assemelha à prosa. Foi exactamente isto que levou Seabra a definir a obra de Caeiro como «o grau zero da poesia», o «grau zero» porque a poesía caeiriana parecía de tal forma prosaica que quase abandonava a linguagem conotativa que é, por definiçâo, a linguagem da poética, e por isso é que podemos, em plena concordancia com o pròprio Caeiro e com Seabra, definir a poesia de Caeiro como anti-poesia.

Mas trata-se, naturalmente, duma anti-poesia dissimulada. Para evidenciaresta ideia, Seabra (e com ele muitos outros) enumera todas as figuras retóricas que se encontram em O guardador de rebanhos: anáfora, metáfora, quiasmo, reiteraçâo. Hourcadc também aponta para as «aparentes contradiçôes»,e entre elas salienta o confuto entre os axiomas e os muitos excmplosde antropomorfismo que saltam aos olhos nos poemas do eremita. Estas «contradiçôes», porém, o jogo entre poesia e anti-poesia, nao levam os dois peritos a abandonar o ponto de vista mormente filosófico. Assim Seabra vê a dissimulacáo como um expediente usado pelo poeta, com «mestria», para conferir à sua poesia um ar de «espontaneidade». A manobra paradoxal, a anti-poesia dissimulada, serve para equilibrar a relaçao entre conteúdo (axiomas) e forma. Afinal a análise de Seabra permanece dentro dos moldes duma visáo filosófica, e a mesma coisa vale quanto a Hourcade. Ele vé as «contradiçôes» como a encenaçâo do «perpetuo confuto entre a sensaçào, a

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percepçâo do mundo exterior e a sua inevitável elaboraçâo pela consciência»
(p. 174). Problema estritamente filosófico.

Até aqui, o nivel a que chamei o projecto explícito de Caeiro, onde a anti-poesia é encarada exclusivamente como anti-filosofia. Como no caso de Palazzeschi, o conceito do sujeito desempenha um papel central, mas, contrariamente ao andamento de Palazzeschi, o sujeito está sempre presente nos poemas de Caeiro. E um sujeito, porém, que queria auto-apagar-se e, se está repetidamnete a explicar o mundo, é somente para explicar que nao há nada para explicar. Isso também faz parte do nivel obvio de Caeiro, faz parte da anti-poesia filosófica.

Finalmente chegamos ao projecto implícito, o qual, penso eu, constituí a mais profunda razáo de ser da poesia de Caeiro. Este nivel consiste num ininterrupto diálogo consigo mesmo e com a tradicáo literaria. (Ao falar de dois níveis ou de dois projectos, é claro que a separacáo é urna abstracçâo. Nos poemas, os níveis funcionam naturalmente juntos).

Em termos de diálogo consigo mesmo podemos observar varias pistas. Assim, a obra de Caeiro constituí o núcleo do «Movimento neopagáo» de Fernando Pessoa, um movimento que ainda por cima se ramifica em dois campos mais ou menos discordantes. Está inserida no movimento literario do «Sensacionismo» e é também urna das pecas fundamentáis no inteiro jogo heteronímico. Finalmente encontra-se, como já foi dito, em diálogo com a maior parte da historia literaria. Como veremos, todas estas relacóes visam preponderantemente à negaçao, primeiro a negaçâo e depois, no espaço vazio, à instalaçâo do novo gènio. E assim fica óbvia a razáo por que Caeiro deseja escrever «o grau zero» da poesia. É que, escrevendo este «grau zero», pode ao mesmo tempo, se nao no poema isolado, pelos menos num só volume, rejeitar toda a tradiçâo literaria e exibir-se corno aquele que cria o absolutamente novo, o genial e o incompreensível. É este duplo movimento, cuja base é fundamentalmente intra-literária, que constituí o núcleo na obra caeiriana.

Com o modo dialogante nao se pode estranhar que grande parte dos poemas sejam de facto meta-poemas. Assim o poema introdutor de O guardadorde rebanhos (Y) apresenta os tres principios fundamentáis no circuito literario. Começa com urna descriçào gérai do «eu» falante, mas no verso 29 apreendemos que esse mesmo «eu» é um poeta. «Ser poeta nao é urna ambiçâo minha». Mais à frente encontramos urna referencia aos versos e à maneira como o poeta os escreve. «Quando me sento a escrever versos». E finalmente, para cumprir o círculo, também é introduzido o leitor. «Saúdo todos os que me lêem». E nâo basta que os leitores sejam simplesmente mencionados, a justa maneira de recepçâo é indicada pelo poeta. Como se vé nada falta - produtor/poeta, produto/poema, consumidor/leitor. Urna referênciatâo

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rênciatâoexplícita ao mundo e ao circuito literarios é algo bem estranho
num poeta que devia entreter urna relaçâo exclusiva entre o «eu» e as coisas.

A quase totalidade dos poemas que nao se podem definir como explícitamente meta-poéticos sáo-no implícitamente. Um exemplo nítido do diálogo com a tradiçâo pode ser observado no poema número X. O poema é, de facto, escrito em forma de diálogo.

Ola", guardador de rcbanhos,
Ai à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?

Que é vento, e que passa, E que jâ passou antes, E que passarâ depois. H a ti o que te diz?

Muita coisa mais do que isso,
Fala-me de muitas outras coisas.
De memôrias e saudades
E de coisas que nunca foram.

Nunca ouviste passar o vento.
O vento sô fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira esta em ti.

Outros exemplos dum diálogo directo encontram-se ñas Rimas inconjuntas, e ainda outras formas de presença imediata do parceiro de diálogo/da tradiçâo vêem-se no poema XXX («Se quiserem que eu tenha ... «) e nos «Inconjuntos» (Ah! querem urna luz melhor ... «).

Com os supramencionados exemplos, podemos afirmar que iodos os poemas de Caeiro oferecem provas do que nao sao (e dentro do pròprio organismo os 4 poemas 'doentes' exemplifícam isto). É so com a representaçâo da imagem negativa que os poemas de Caeiro conseguem ter existencia. Surgem como a negaçâo da tradiçâo. A pequeña nota de Ricardo Reis sobre as influencias sofridas por Caeiro, onde é definida a relaçâo entre Caeiro e Pascoaes, descreve muito bem o prosseguimento.

Talvez Caeiro proceda de Pascoaes; mas procede por oposiçâo, por reacçâo.
Pascoeas virado do avesso, sem o tirar do lugar onde está, dá isto - Alberto
Caeiro.9

Anteriormente foi dito que os poemas de Caeiro dialogam também internamentecom
o universo poético de Pessoa, e é obvio que O guardador de
rebanhos é a peca principal no caso do neopaganismo. Por isso, seria justificável,penso

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cável,pensoeu, encarar os escritos em prosa de Ricardo Reis e de Pessoa ortónimo sobre o assunto, sobretudo como elucidacóes dos poemas de Caeiro.Tratarei do neopaganismo neste lugar, porque parece que funciona da mesma maneira como os poemas supramencionados, quer dizer como negaçâoe rejeiçâo duma traduçâo especificamente literaria.

O movimento neopagáo nao é, no jogo de Pessoa, um único e sólido movimento. Existem duas fracçôes divergentes: Urna ortodoxa (Reis, Mora e Caeiro) e outra, a que Pessoa chama «superior», de compromisso (Pessoa ortónimo). Num texto central para a compreensâo da índole do neopaganismo, Pessoa descreve os dois ramos do movimento e tenta também individualizar o ponto que liga os ramos divergentes. Sintomaticamente o traço comum é negativo.

Em casos destes, em que os dois ramos entre si divergentes constituem urna corrente, sucede que a sua uniâo essencial provém dum inimigo comum a combater, da comum aversáo, porventura, em que a especificidade da corrente assenta».10

O «inimigo comum», é bem conhecido, é toda a cultura crista (decadente, desequilibrada, mórbida) e parece que, antes de urna revolta literaria, estamos perante urna crítica de cultura, de religiâo e filosofia. Mas so aparentemente. Resulta, de facto, que grande parte da critica do neopaganismo visa rejeitar correntes literarias tradicionais, e nos seus escritos sobre o neopaganismo Pessoa ortónimo faz distinçâo, por exemplo, nao só entre culturas e religióes mas também entre as estéticas cristas e pagas o que, consequentemente, dá ocasiáo de rejeitar a estética crista «dos sentimentos íntimos». Pessoa recusa a estética de expressáo «cristista», mas nunca chega, no mesmo texto, a definir positivamente urna estética do paganismo. A negaçâo reina.

Outra crítica literaria pode ser observada num texto de autoría de Ricardo Reis. Reis passa em revista très «interpretaçôes modernas do paganismo». Trata-se do renascimento italiano, do classicismo francés e do decadentismo. Todas aquelas tentativas falham, e falham por causa de razóes estéticas; isto é, Reis entende mais ou menos inconscientemente (ou muito conscientemente?) o campo de batalha do paganismo como sendo o campo da estética. Neste campo de batalha sao antes de mais os poetas decadentistas Walter Pater e Oscar Wilde a levarem pancada. Sâo os poetas mais recentes e, por isso, ameaçam mais a posiçâo de Caeiro como o único e o totalmente original do neopaganismo. Por conseguinte, o exorcismo é correspondentemente forte.

Nos textos sobre o sensacionismo verifica-se o mesmo padráo. Grande
parte da energia gasta-se na tentativa de rejeitar um passado literario. Aqui
os alvos sâo o classicismo, o romantismo e o simbolismo.

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Quanto aos textos que inserem a poesia de Caeiro nos movimentos literarios e culturáis inventados por Pessoa, podemos concluir que a modalidade deles é sobretudo negativa, que recusam, e podemos também concluir que os alvos sao, em grande parte, os movimentos literarios anteriores. Porém, para nao deixar dúvida alguma quanto ao carácter fortemente negativo do neopaganismo, cito do trecho final do «Programa geral do neopaganismo portugués».

Mas, de comum, nos, neopagâos portugucscs, rcjeitamos a obra cristâ por œmpleto, na sua forma directa, e nas suas formas indirectas. Assim, rejeitamos: a democracia, todas as formas de governo nâo aristocrâtico, todas as formulas humanitârias, todas as formulas de desequilfbrio como, por exemplo, o imperialismo germânico ou a democracia aliada; rejeitamos o feminismo, porque.... (...) Nisto estamos todos de acordo. Rejeitamos o spartanismo idiota dos eugenistas, e do aperfeiçoamento à mâqiuna das raças. Rejeitamos a formula tradicionalista, porque a ûnica verdadeira tradiçâo civilizada é a tradiçâo pagâ: as outras sâo tradiçôes locais estéreis de efeito civilizacional, prejuidicais as naçôes. Povo conservador, povo morto.11

Voltemos aos poemas de Caeiro, aos poemas meta-poéticos de O guardador de rebanhos. Em muitos deles sao mencionados «os poetas» e sempre numa intencáo polémica. Esta polémica, porém, normalmente nao se dirige a um poeta específico ou a urna corrente literaria específica, (embora, de vez em quando, seja possível). É urna condenacáo e rejeiçâo dos poetas em si mesmos. Um exemplo desta rejeiçâo universal encontramo-lo no poema V, a invectiva contra a metafísica. Neste poema, cujo tema imediato é a metafísica e os seus males, neste poema, que real e aparentemente faz as contas com a filosofia, neste poema, afinal, assistimos também à associaçào entre poesia e filosofia.

Mas abre os oihos e vê o Sol,
E jâ nâo pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filôsofos e todos os poetas.

A filosofia e a poesia sao aqui a mesma coisa, o mesmo mal. Por isso, quando
Caeiro está a condenar a filosofia, está também, e sobretudo, a rejeitar toda a
tradiçâo e toda a historia da poesia. No poema XXVIII lemos:

Os poetas místicos sâo filósofos doentes,
E os filósofos sâo homens doidos.

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No poema XXXIX vemos:

Porque o único sentido oculto das coisas
É elas nao terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
(...)

É evidente que Caeiro tenta libertar-se da tradiçâo poética, porque a poesia ai é considerada um espaço para reflexáo e para interpretaçâo do mundo. É o espaço onde brincam os símbolos, o espaço «das coisas para tras», e é só limitando a liberdade deste espaço que a verdadeira poesia pode alcançar a sua liberdade. No poema XXIV diz-se que se trata de:

(...)
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestraçâo na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas sâo as freiras eternas
(...)

A mençâo do poeta (e do filòsofo) e também a negaçâo do poeta.

Há também meta-poemas que se apoderam dos tópoi mais sagrados da poesia romàntica e, de seguida, invertem-nos. Um exemplo bem conhecido sâo os dois poemas sobre o luar. No primeiro (XIX) Caeiro mostra-se propositadamente como vítima da maneira tradicional de encarar a lúa. Ai os raios da lúa existem só em funcáo doutra coisa, sao prenhes de significacáo simbólica e de vagas lembranças. No segundo (XXXV) Caeiro entra em diálogo com «os poetas todos» e escreve a famosa tautologia do luar. Assim é que esvazia e inverte os tópoi clássicos.

Ainda outros poemas discutem a forma da poesia e também aqui «os
poetas que sao artistas» (XXXVI) sao rejeitados juntamente com as rimas
(XIV) e toda a tradiçâo formal da poesia.

Em suma, Caeiro rejeita tudo e isso cria-lhe graves aporias, porque ainda está obrigado a servir-se dos antigos meios de expressào. A lingua prepararne armadilhas e, consciente disso, o problema é tratado pelo poeta nao-poeta nos poemas XXVI, XXVII e XXXI, onde diz exactamente ser obrigado a «usar a linguagem dos homens/Que dá personalidade às coisas, /e impôe nomes às coisas» (XXVII). Também Reis trata, nos seus textos sobre Caeiro, em extenso o assunto e reconhece que o poeta nao conseguiu inteiramente rasgar «a névoa crista» nem de libertar-se pessoalmente da influencia déla. Isso prejudica a obra, ainda admirável, de Caeiro.12

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Da intervençâo de Reis, assim como do pròprio acto de por em causa nos poemas o andamento dos mesmos poemas, constam pelo menos duas coisas: em primeiro lugar, as «contradicóes» dos poemas nao se baseiam (exclusivamente) no «perpetuo confuto» entre a percepçâo do mundo e a elaboraçâo delà pela consciência, mas antes num jogo muito consciente com a historia, com a historia como historia de literatura e de cultura. (As contradicóes sao os rastos da luta contra a tradiçâo e é assim que Reis/Pessoa as encena); em segundo lugar, os esforços de Caeiro revelam-se (nos textos de Reis e também nos poemas) como urna vontade de 'tabula rasa' total. Aspiram à nâocultura, à náo-poesia e também ao nâo-poeta. Por isso, nâo se pode estranhar que Reis, (Europa-América, 439, p. 169) num famoso passo, defina Caeiro somente nos aspectos negativos: «Esta maneira de olhar para urna pedra pode ser definida como a maneira totalmente náo-poética de a olhar.» E mais à frente fala de «ausencia de sentimento», de «sentimento negativo».

Aqui é que temos a poesia dialogante e meta-ficcional de Caeiro: numa relaçâo inteiramente negativa com a historia literaria e cultural e só no segundo lugar e como meio e veículo na relacáo filosófica eu - mundo dos fenómenos.

O poeta está morto, o poeta viva! Assim é que nos quatro últimos poemas de O guardador de rebanhos podemos assistir à jubilante ressurreiçâo do poeta. Depois da extinçâo da tradiçâo e dos poetas, é no vazio que deixa esta expurgaçâo, que o verdadeiro poeta pode enfim assumir todo o seu poder e gloria. Neste respeito o poema XL VI é extremamente revelador. Normalmente é lido como a declaraçâo mais radical do poeta quanto à vontade de atingir urna poesía totalmente pura e objectiva («Procuro encostar as palavras à ideia/E nao precisar dum corredor») e também como a sua oscilaçâo entre o sucesso e o fracasso com este projecto (e isto é urna leitura inteiramente permissível e plausível), mas aqui o que interessa, no entanto, é a encenaçâo da transfiguraçâo do poeta. Sintagmaticamente o poema desdobra-se assim: na primeira parte o poeta descreve a sua maneira de escrever, define a sua intençâo com a mesma escrita dele, refere as dificuidades que o peso da cultura lhe apresenta, explica a sua contra-estrategia que consiste essencialmente no auto-apagamento: «Alberto Caeiro»/«homem» - «animal humano». Um andamento em direcçâo à anulaçâo do «eu», portanto, e num tom muito modesto. Mas na estrofe seis o «Ainda assim» indica a mudança das coisas. Apesar da anulaçâo, e por causa déla, o poeta surge corno «alguém» e nao é um «alguém» comum.

Ainda assim sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensaçôes verdadeiras.

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Trago ao Universo um novo Universo
porque trago ao Universo ele-próprio.

Estas afirmaçôes do EU do poeta, que o retratam como o «Descubridor» e como o grande criador do Universo, têem obvias conotaçôes prometeicas. Sâo de facto reivindicadas todas as propriedades criadoras do poeta, o poeta volta a ser o genio criador do mundo. Nesta luz, aja referida auto-descriçâo «modesta» muda de carácter. «Alberto Caeiro» anula-se, nâo é «nem sequer (...) um homem», mas, se aqui nao é um «Supra-Camóes», pelo menos é um super-homem. O auto-anulamento acontece em funçâo da ambicáo do poeta de se tornar o poeta criador super-humano. Assim, quando o poeta denomina o seu pròprio nome (e é o único poema em que o nome «Alberto Caeiro» surje), é só por aparente modestia que ao mesmo tempo o rejeita («nao Alberto Caeiro»). A rejeiçâo do pròprio nome é o acto que prepara a transfiguraçâo no grande «alguém» e, por isso, a invocaçâo do nome constituí antes de mais um momento de grande soberanía e altivez. É exactamente o poeta Alberto Caeiro que sabe transbordar os seus limites humanos. E é nesta perspectiva que, na última estrofe do poema, a descricáo do nascer do sol deve ser entendida. O sol nasce triunfalmente criando um novo dia, um novo mundo, da mesma maneira que o poeta cria todo o universo. Caeiro, «perfeitamente sabedor», é o poeta-sol. Depois do traballio da negaçâo, finalmente o renascimento, a nova luz. (Veja também o trecho do poema V, página 248).

O júbilo é ampiamente testemunhado nos escritos de Reis sobre Caeiro. A
novidade absoluta e a originalidade sâo sublinhadas. Assim:

Talvez eu tenha logrado apontar a natureza extraordinâria da inspiraçâo de
Caeiro, a fenomenal novidade da sua poesia, o seu génio espantoso e sem
précédente, toda a sua atitude.
(...)
Caeiro podia ser infiel ao seus pricfpios; nunca podia ser inoriginal.13

Os textos de Reis sao cheios de referencias à «profunda originalidade» dos poemas do poeta-sol e nào é exagerado dizer que a mensagem central de Reis é a de evidenciar a originalidade, a novidade e a unicidade do poeta Caeiro. Trata-se de edificar e justificar urna posiçào como renovador excepcional da historia literaria. Por isso, o retrato feito por Reis atinge claramente traços de megalomania. Caeiro é comparado com Aristóteles, escreveu, diz ainda Reis, «a maior obra que alma portuguesa tem feito», os versos sao «imortais» e o pròprio poeta aproxima-se a «um deus, ou um semideus». Quase tudo está resumido neste verso do poema XXVII do «semideus» pròprio:

Bendito seja eu por tudo quanto nâo sei

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E nos podemos acrescentar - por tudo quanto nâo sou.

Assim é que Caeiro entra na lógica da vanguarda. Nos seus poemas, desdobra-se urna teoria de conhecimento objectiva, mas esta teoria serve, sobretudo (além de ser em certa medida também objectivo em si mesma), como pretexto para rejeitar toda a historia literaria e cultural, para alcançar um «grau zero» da poesia e deste grau zero levantar-se como o novo criador duma originalíssima poesia nâo-poesia. Como Palazzeschi, escrevc urna poesia negativa, urna anti-poesia (por diferentes que sejam as duas variantes), mas enquanto que a poesia da segunda fase de Palazzeschi ataca o público e a tradiçào numa agressividade desvelada, os poemas fináis de O guardador de rebanhos auto-celebram-se. Urna coisa muito importante, porém, têm em comum. A poesia negativa, a modalidade negativa, cria a premissa para o estrondoso e jubilante retorno do poeta, seja o poeta criador do mundo ou o poeta destruidor. Num só movimento, num só volume, Caeiro cumpre as duas fases de Palazzeschi.

A aporia do poeta, a vontade de 'tabula rasa', o retorno do poeta. Eis
Caeiro numa perspectiva intra-literária.

Jan Hupfeldt Nielsen

Viborg, Dinamarca



Notas

1. Digo vanguarda histórica para manter urna nítida distinçâo entre os movimentos originarios como futurismo, dadaísmo e surrealismo e a neo-vanguarda dos anos sessenta (e até hoje).

2. É escusado dizer que também o ramo positivo da vanguarda histórica tem um aspecto de rejeiçâo, mas a deferenciá-lo do negativo há a estética referencial que se desenvolve depois do acto de rejeiçâo.

3. O «crepuscolarismo» italiano nâo era um movimento literario; mas, nos primeiros anos deste século, era possível observar em varios poetas um sentimento ou urna convicçâo da impossibilidade da poesia na sociedade moderna, industrial e prosaica. Normalmente Guido Gozzano é considerado como o 'chefe ideológico' deste vago sentimento.

4. A influencia do simbolismo em Palazzeschi é óbvia, e grande parte do mundo imaginario que os poemas evocam está ligada ao imaginario simbolístico. H também o caso de «Le fanciulle bianche». A combinaçâo de igreja e de meninas brancas há de evocar ideias de virgens presas ou de fantasmas. Fxiste, portante), toda urna dimensâo da poesia de Palazzeschi que transcorro com olhos fechados.

5. Deve ser obvio que a anti-poesia «sottovoce» ou «grau zero» é bem diferente da anti-poesia que encontramos, por exemplo, no dadaísmo. Entre Tristan Tzara e o primeiro Palazzeschi & Caeiro há um salto considerável.

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Resumo

O objectivo do artigo é abordar o heterónimo pessoano Alberto Caeiro numa perspectiva de vanguarda. Urna suposiçâo de base do artigo é que existem um ramo positivo e mimètico e outro negativo e intra-literário na feceta literaria da vanguarda histórica. Comparando Alberto Caeiro com o poeta futurista italiano Aldo Palazzeschi, o artigo quer mostrar que Caeiro pertence ao lado negativo da vanguarda histórica. Inserido neste lado negativo da vanguarda a primeira preocupaçâo da poesia de Caeiro nâo é o problema filosófico da relaçâo eu - mundo mas a relaçâo literatura - literatura. Assim Caeiro rejeita toda a tradiçâo literaria para se instalar como o poetasol que cria um novo mundo, urna nova literatura.



6. O homem, o «Senhor», que está preso na gaiola, é provavelmente um retrato de Marinetti e o poema urna celebraçâo do mesmo Marinetti.

7. Pierre Hourcade, in: Temas de literatura portuguesa, 1978, p. 172-173.

8. José Augusto Seabra, in: Fernando Pessoa ou o Poetadrama, 1989, p. 91-92.

9. Obra em Prosa de Fernando Pessoa, Europa-America, 439, p. 168.

10. Obra em prosa de Fernando Pessoa, Eu ropa-América 471, p. 119. O texto em questâo é de Pessoa ortónimo (presumivelmente). Intitula-se «Programa geral do neopaganismo portugués».

11. «Programa do neopaganismo portugués», Pessoa ortónimo (?), in Obra em prosa de Fernando Pessoa, Europa-América, 471, p. 120.

12. Obra em prosa de Fernando Pessoa, Europa-América, 467, p. 207-208.

13. Obra poética de Fernando Pessoa, Europa-América, 439, p. 169.